No meu coração era tão real


Na parede do quarto da Enfermeira, estava colado o cartão que eu mandara junto com as flores e na tomada, estava conectado o carregador do telefone. Perguntei pela caixinha de música, e ela disse que havia emprestado a uma amiga que estava triste. Errado, porque eu dei a caixinha de música para que ela se lembrasse de mim, não para que ela a terceirizasse como lenitivo de dores alheias. Mas não disse nada, deixei que ela teorizasse sobre seu ato sem interrompê-la ou questioná-la, afinal aquela era a situação perfeita para desfazer de vez o imbróglio criado dias atrás, talvez nem fosse preciso falar nada, era só aproveitar o ângulo certo, a falha na voz, a respiração cortada e beijá-la.


Andei pelo quarto, transparecendo tranquilidade e leveza, mas por dentro eu era só angústia. A luz do sol começava a invadir o ambiente, dando seus últimos acenos naquela tarde de inverno. Ela parecia incomodada. Então me mostrou o perfil de uma fotógrafa que ela seguia no Instagram, depois o de uma desenhista. Pronto, era o momento ideal, os rostos quase colados, os hálitos já se confundindo e se misturando no ar, mas, ah, Morrissey, "um medo estranho tomou conta de mim" e eu simplesmente me afastei.

Ela fechou o Instagram. Nitidamente eu deveria ir embora, a chance havia passado, mas meu telefone ainda precisava de uns 10% de carga e esse era o meu pretexto para continuar ali. Nesse momento a luz do sol já preenchia boa parte da parede oposta à janela, cortada em listras pela sombra da persiana. A conversa continuou e, não sei como - eu deveria saber, para que pudesse ter evitado - chegou ao tópico "E então? E nós?". Ela não soube explicar, mas soube dizer que não me queria mais, mesmo sem nunca ter dito que me queria de fato. Sendo assim, não era necessária explicação alguma. Eu levantei e fui até a janela. Olhei diretamente para o resto de sol que se despedia daquele dia, como uma criança que fez malcriação junto com outra e conseguiu escapar do castigo. Virei para ela, que desviou o olhar e respirou, deixando os ombros caírem, cansada. Mas ainda faltavam 5% de carga, e eu não ia embora enquanto o telefone não estivesse carregado.

Então eu perguntei por que ela tinha voltado, se não queria. Mas no meio da frase eu percebi que era inútil. Inútil e impreciso, porque fui eu que mandei aquela maldita SMS dizendo "E se recomeçássemos como num jogo de videogame, depois de perder uma vida devido a um obstáculo que agora sabemos onde estará?". Noventa e oito por cento. Eu não aguentava mais aquilo. Tirei o plugue e segui para a porta. Ela me acompanhou. Na despedida, logo após o beijo no lado direito da face, a caminho do esquerdo, num impulso, arrisquei sua boca. No entanto, ela parecia esperar por aquilo, então esquivou-se e disse "Por quê? Por quê?".

Não esperei o elevador, fui pela escada tentando coordenar os movimentos das pernas e ao mesmo tempo desemaranhar os fios do fone de ouvido. No meio do quarteirão - como se não bastasse a ironia de eu ter assistido naquela mesma tarde a um filme chamado Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios e ter passado o dia sem eletricidade em casa, o que me obrigou a carregar o telefone na casa da Enfermeira -, ligo o MP3 player e a música em que eu havia parado continua... "I know it's over, and it never really began, but in my heart it was so real".

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