Adaptação

 


No intervalo entre ir embora da Colômbia e vir morar em Portugal, muitas coisas me preocuparam, como ter grana, aprender uma profissão nova, fazer novos amigos. Mas se tem uma coisa com que nunca me preocupei foi com a adaptação à língua, afinal é tudo português. Só que não. Na minha cabeça, se eu tinha me dado bem com o espanhol na Colômbia, aqui ia ser moleza. Mas, como diria Raul, minha cabeça só pensa aquilo que ela aprendeu, por isso mesmo eu não confio nela, sou mais eu.

De fato

Eu cheguei aqui num sábado e ia começar a trabalhar na segunda-feira seguinte. No domingo, a Eliana, minha amiga de Moçambique, me levou pra conhecer o Parque das Nações. No metrô (aqui é só metro mesmo, sem afrancesamento), ela me perguntou “Então, amanhã, vais de fato?”. Pausa dramática… “Como assim, não é certo o negócio?”, respondi já tenso. Talvez ela tenha achado que o barulho do metrô me atrapalhou e por isso eu não escutei direito, aí repetiu “Amanhã, vais de fato?”. Com um leve desespero, continuei a conversa: “Calma, Eliana, vamo ter calma aqui, não tava tudo combinado, definido? Tu vai comigo amanhã e tudo mais…”. “Sim, vou, só quero saber como vais vestido, afinal é teu primeiro dia”, ela respondeu na maior tranquilidade do universo. “Oi? Como eu vou vestido? Tá mudando de assunto por quê?”. Então ela me explicou que fato é a palavra do português europeu equivalente ao nosso paletó. Mais aliviado, perguntei como eles falavam de fato no sentido de realmente, de verdade. E é só colocar o maldito c antes do t e pronto, de facto. E só depois pensei “Ih, rapaz, onde eu vou arranjar um paletó?”. Mas me fiz de doido e fui de gola polo, calça jeans e all star já com a desculpa do “ninguém me avisou” preparada.

Entretanto

Logo na primeira semana de trabalho, recebi um e-mail da minha gerente de projetos com as instruções para um trabalho. Logo em seguida, recebi outro e-mail dizendo que em breve chegaria outro trabalho. Mais tarde, quando fui tirar uma dúvida, ela me disse “Entretanto aquele outro trabalho já chegou”. Tem alguma coisa errada com esse verbo, pensei. Tá faltando alguma coisa nessa frase. Se o trabalho ia chegar e chegou de fa(c)to, então qual é a desse entretanto? Pra ele estar aí, deveria haver uma negativa em algum momento. Resumi essa filosofia coesiva toda pra ela, que me explicou da maneira mais simples possível fazendo longa uma pausa no meio da palavra: “Entre … tanto”. Aí peguei a ideia, é tipo em espanhol, mientras tanto, ou em inglês, in the mean time, ou o nosso “nesse meio tempo”. Em algum momento da história, entretanto virou conjunção adversativa pra nós, mas aqui ainda permanece seu sentido original.

Asneiras

Em outra oportunidade, quando eu estava traduzindo o Splinter Cell, minha chefe me perguntou porque eu tinha escrito tantas “asneiras”. Respirei fundo já meio puto (que aqui significa criança do sexo masculino) com o tratamento e disse “Oi?”. Aí a Manu, minha colega de trabalho carioca, percebendo o que poderia acontecer, me disse que “asneira” significava “palavrão” e tudo correu da melhor maneira. Em tempo: o original em inglês tava cheio de palavrão, eu só traduzi.

Sempre

Já fazia uns meses desde que eu tinha chegado aqui. Toda sexta-feira eu almoçava num restaurante perto do trabalho e normalmente a Manu e a Inês iam comigo. Um dia, a Manu não foi trabalhar, aí a Inês me perguntou “Sempre vais almoçar hoje?”. É muito advérbio pro meu gosto. E ao perceber meu semblante confuso, ela me faz a pergunta que eu mais ouvi aqui: “Não é assim que vocês dizem?”. Apesar de ser até fácil de entender o que ela quis dizer, não é tão simples assim que você ouve a frase. Mas deu tudo certo e almocei com a Inês naquele dia (mas não sempre).

O bico na boate

No Carnaval de 2013, fui a uma cidade no norte do país chamada Covilhã. Fui a convite de uma amiga que eu tinha conhecido meses antes aqui em Lisboa. Quando voltei, numa conversa com a Inês, ela me perguntou como tinha sido a viagem. E entre um episódio e outro narrado, falei que minha amiga fazia mestrado em Moda na universidade de Covilhã e nos fins de semana fazia uns bicos numa boate. Aí a Inês arregalou os olhos e, estarrecida, perguntou: “Mas por que ela faz isso, os pais dela não a ajudam?”. Por um momento pensei que não houvesse a cultura aqui de estudantes que trabalham ou que ela tinha visto um anjo numa torta flamejante dizendo Façam-se Beatles com um A, mas não era nada disso. Eu respondi simplesmente que ela queria ter uma renda extra e que além disso ela se divertia, afinal grande parte dos amigos dela frequentavam a boate. “Que horror!”, foi tudo que a Inês conseguiu responder. Aparentemente eu tinha dito algo de muito grave. E tinha mesmo. Bico é um dos sinônimos para sexo oral e boate é um jeito pejorativo de chamar discoteca. Aí vocês imaginam o que a Inês pensou que minha amiga fazia nos fins de semana em Covilhã.

E eu acabei entrando na onda

Eu resisti o quanto pude à influência da variante europeia da nossa língua. Não que eu tenha algo contra, a questão é que meu trabalho exige que eu mantenha meu português o mais abrasileirado possível. Mas estando aqui já há mais de dois anos, começo a perceber que involuntariamente uso alguns termos que são mais comuns neste lado do Atlântico. Já disse pormenor no lugar de detalhe, brutal no lugar de que massa!, levantar dinheiro no lugar de sacar dinheiro e por aí vai.

Por enquanto, é isso. Já agora tenho de ir, porque o autocarro está a chegar.

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