Luana vê demônios


Marcelo sempre imitou quem ele admirava. Ele fazia o 1º ano e tinha um grande amigo que namorava uma loirinha linda, de olhos verdes. Então Marcelo pensou que também deveria ter uma namorada loirinha, de olhos verdes. Procurava nas outras turmas do colégio, mas não encontrava. Até que, numa quinta-feira de agosto, numa sala da 7ª série, ele viu uma loirinha linda, de olhos verdes e bem branquinha.

Luana.

Ele não teve coragem de lhe falar. O medo foi tanto, mas tanto, que ela só ficou sabendo que eles estavam namorando depois dele e dos seus amigos.

Mas ele acabou dando um jeito de fazê-la saber que estavam juntos. Ela relutou, é verdade, mas aceitou, com uma condição: nada de contato físico, no máximo selinhos gentis, e Marcelo que se virasse com explicações quaisquer a quem perguntasse o porquê disso. E, é óbvio, não duraram um mês “juntos”. Ela mandou-lhe uma carta cheia de erros de ortografia e acentuação. Pior, cheia de mentiras que eles combinaram para pôr fim à mentira maior. Marcelo mostrou a carta a uma amiga, a namorada loira do seu amigo. E ela perguntou:

— Opinião é com “p” mudo?

É certo que Marcelo merecia aquilo, pela mentira ou por querer ser igual aos outros, mas ele achava que aquela carta poderia ter sido mais bem escrita.

Isso aconteceu há uns seis anos. De lá para cá eles se viram umas duas ou três vezes. Ela engordou um pouco, é verdade, mas continuava branquinha, com olhos verdes e loira. Ainda mais: com um par de seios que na 7ª série não havia, e deveriam ter mamilos rosadinhos, no mesmo tom dos seus lábios. Num desses encontros casuais, ela pediu para que Marcelo a procurasse no Facebook. E ela estava lá. Uma das páginas que ela havia curtido era “Porra de beijo, eu quero é sexo”. Marcelo tentou ligar aquela comunidade à Bíblia sempre presente, colada ao seu peito e só ligou para ela por causa daquela página, porque queria saber se toda a pele dela era daquele tom.

Foram ao teatro, mas ele não acreditava que ela estava entendendo aquilo. Ele não acreditava nela, nem acreditava que estava fazendo aquilo só para tirar a sua roupa. Conversaram na calçada da casa dele, e de repente ela olhou para ele e disse:

— Você viu?

— O quê?

— Deixa pra lá, você não vai entender.

Ele tentou beijá-la, mas ela pediu para que ele não deixasse acontecer agora. “Então está em minhas mãos?”, ele pensou. Foram ao teatro mais uma vez. Marcelo assistiu à peça pensando que já estava tarde, e não daria tempo de ficarem em sua casa para que ele tentasse algo mais, digamos, substancial. O ator jogou quarenta folhas ao chão, e o espetáculo acabou às 22h. Ela disse que não tinha problemas com horários, que gostava de caminhar de madrugada pelo bairro, mas Marcelo não, ele tinha problemas com horários. Supondo que acontecesse algo mais do que palavras pueris, no final ele teria que acompanhá-la até sua casa, o que não era muito interessante para ele, pois a vizinhança acabaria por saber da sua existência, e Marcelo não queria que ninguém mais do que ela própria, Luana, soubesse que ele existia para ela. Nem ele poderia se convencer disso. Ele estava ali simplesmente para tirar a roupa dela, fazer o que tinha que fazer, uma ou duas vezes, quem sabe três, e ir embora.

Mas isso parecia tão improvável, e ele ficou calculando quantas vezes ia ter que escutar as histórias dela até conseguir o que queria. Eram histórias que ele não queria saber. Coisas muito íntimas, nas quais ele não estava interessado, a menos que chegasse logo a hora de fazer o que ele realmente queria. Ela contou que foi casada, que se separou, que seu ex-marido quis voltar, mas ela não. Falou também da primeira vez que foi ao ginecologista e que detestou, porque sempre teve vergonha de mostrar os seios.

— E seu marido?, Marcelo perguntou, mas com certeza estava querendo perguntar “e eu, como vou fazer?”.

— Ah, levou um tempo pra eu deixar ele ver meus seios, sei lá, eu não gosto, eles são muito grandes, tenho vergonha deles.

Não eram tão grandes assim. Eram suficientes. E, para Marcelo, ela não tinha seios, tinha peitos mesmo.

Estava tarde, Marcelo preferiu se despedir, e ela o abraçou forte:

— Você viu?

— O quê?

— Você nunca vê?

— Talvez eu até veja, mas não sei o que é.

— Deixa pra lá, já vou.

E então ele percebeu uma borboleta tatuada nas suas costas. Ela disse que foi uma loucura, que o pastor tinha brigado com ela, mas que tinha se arrependido, que na época estava abalada pela separação e queria mudar de alguma forma, por isso fez a tatuagem.

Mais uma vez tentou beijá-la, mas conseguiu apenas umas respirações profundas.

Definitivamente Marcelo se deu conta de que nunca iria saber conduzir tal situação sem que ela percebesse que seu único objetivo era o de ver as flores em que aquela borboleta pousava. Como ele transformaria aqueles beijos quase recusados em corpos nus entrelaçados? Como ele faria aquela borboleta voar? Não, ele ia acabar sendo descoberto. Ela quis ir ao teatro novamente, mas Marcelo disse que não havia peça interessante em cartaz, ela insistiu, ele ficou monossilábico, ela perguntou:

— Você viu?

— Ah, Luana, por favor.

— Um demônio, eu vi, mas dessa vez foi bem nítido.

— É o meu desejo que está indo embora, ou meu cinismo, que está se revelando dessa forma, disse Marcelo, aproveitando para se confessar e tentar livrar-se dela.

— Como assim?

— Nada, Luana, eu não sou pra você. E neste momento os olhos dela lacrimejaram.

— Tudo bem, eu entendi, pelo menos você foi sincero.

— Não, eu não fui, e é melhor você ir, antes que eu a faça se sentir pior.

Ela saiu, com aquele andar preguiçoso e aquele jeito de suburbana divorciada que mora numa casa que fica nos fundos da casa da mãe.

E ele ainda a quer? Quem sabe? Mas ele não seria capaz de fazer tanto esforço, pois ela o obrigaria a escutar tanta coisa que ele sempre detestou. Não, ele não precisa dela, nunca precisou, ela é só uma garota branquinha, de olhos verdes, com peitos grandes, divorciada e que vê demônios. Trivial demais, melhor ficar quieto.

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