Transa, Caetano Veloso, 1972


Esse talvez seja o disco mais bem produzido da MPB. A sensação ao ouvi-lo é de que cada nota de cada instrumento foi minuciosamente escolhida e posta num lugar específico e insubstituível. E essa sensação se potencializa porque o disco da semana anterior foi o caos de Os Mutantes. Depois de ouvir este disco, passei a respeitar o Caetano artisticamente. Não que antes eu não respeitasse, mas não tinha conhecimento de causa. O único disco inteiro que eu escutara dele fora o Prenda Minha, ao vivo, de 1999, em que ele transformou “Sozinho”, do Peninha, em uma música sofisticada. Além disso, escutei as clássicas da época da Tropicália.

Mas o Transa é algo fenomenal. O começo de “You Don’t Know Me” é um convite a escutar todo o disco. E é já nessa música que você saca o lance do título do disco. A transa, a junção entre o inglês do exílio em Londres e o português de sua terra. Em “Nine Out of Ten”, essa transa é mais evidente no verso “I’m alive and vivo, muito vivo, vivo, vivo”. “It’s a Long Way” é mais um exemplo dessa união de línguas e culturas. A mistura de Beatles (“It’s a long and widing road”) com Zé do Norte (“Os olhos da cobra verde/Hoje foi que arreparei/Se arreparasse a mais tempo/Não amava quem amei) reflete o sincretismo Brasil (Nordeste, especificamente)-Inglaterra.

“Mora na Filosofia” foge um pouco do conceito do disco, e é, sem dúvida, a música mais dor-de-corno de todas, mas não por isso com menos qualidade. Os versos “Se seu corpo ficasse marcado/Por lábios ou mãos carinhosas/Eu saberia, ora vai mulher,/A quantos você pertencia/Não vou me preocupar em ver/Seu caso não é de ver pra crer/Tá na cara” não são de uma poesia tão profunda, mas tornam-se especiais na voz do intérprete e com o background dos arranjos muito bem produzidos.

Mas “Triste Bahia” é a obra-prima do disco. Se o Caetano Veloso quisesse, poderia ficar lá em Londres mesmo e viver o resto da vida só se achando foda por ter feito essa música. Ela começa com um soneto do Gregório de Matos musicado, e bem musicado. Poesia musicada é um risco muito grande, que nem todos conseguem. (No próximo disco explico quem não conseguiu). E eu suspeito que as outras estrofes sejam trechos de cantigas populares baianas ou nordestinas. O resultado é uma ode à terra natal, como tantos brasileiros fizeram do exílio. A seguir, a música e a letra.


Triste Bahia
(Caetano Veloso/Gregório de Matos)

Triste Bahia, oh, quão dessemelhante…
Estás e estou do nosso antigo estado
Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado
Rico te vejo eu, já tu a mim abundante
Triste Bahia, oh, quão dessemelhante
A ti tocou-te a máquina mercante
Quem tua larga barra tem entrado
A mim vem me trocando e tem trocado
Tanto negócio e tanto negociante

Triste, oh, quão dessemelhante, triste
Pastinha já foi à África
Pastinha já foi à África
Pra mostrar capoeira do Brasil
Eu já vivo tão cansado
De viver aqui na Terra

Minha mãe, eu vou pra lua
Eu mais a minha mulher
Vamos fazer um ranchinho
Tudo feito de sapê, minha mãe eu vou pra lua
E seja o que Deus quiser

Triste, oh, quão dessemelhante
ê, ô, galo canta
O galo cantou, camará
ê, cocorocô, ê cocorocô, camará
ê, vamo-nos embora, ê vamo-nos embora camará
ê, pelo mundo afora, ê pelo mundo afora camará
ê, triste Bahia, ê, triste Bahia, camará
Bandeira branca enfiada em pau forte…

Afoxé leî, leî, leô…
Bandeira branca, bandeira branca enfiada em pau forte…
O vapor da cachoeira não navega mais no mar…
Triste Recôncavo, oh, quão dessemelhante
Maria pegue o mato é hora…
Arriba a saia e vamo-nos embora…
Pé dentro, pé fora, quem tiver pé pequeno vai embora…

Oh, virgem mãe puríssima…
Bandeira branca enfiada em pau forte…
Trago no peito a estrela do norte
Bandeira branca enfiada em pau forte…
Bandeira…

FICHA

1. “You Don't Know Me” (Caetano Veloso)
2. “Nine Out of Ten” (Caetano Veloso)
3. “Triste Bahia” (Gregório de Matos Guerra/Caetano Veloso)
4. “It's a Long Way” (Caetano Veloso)
5. “Mora na Filosofia” (Monsueto Menezes, Arnaldo Passos)
6. “Neolithic Man” (Caetano Veloso)
7. “Nostalgia (That's What Rock'n Roll Is All About)” (Caetano Veloso)

2 comentários:

  1. Muito boa a seleção até agora, estou acompanhando a seqüência dos textos, Caprino.

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  2. Na música "Triste Bahia" o Caetano conseguiu sofisticar o popular,quando ele grava Peninha,aí eu já não gosto.Muito boa sua resenha.

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