O livro-objeto


Numa das primeiras cenas do filme Dom, de Moacyr Góes, o personagem principal, um aficionado pelo romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, recebe de presente da namorada um exemplar da primeira edição do referido romance. O mesmo livro que foi tocado, manuseado, cheirado e lido por uma pessoa lá em 1890, quando a história de Bento e Capitu foi publicada, agora seria tocado, manuseado, cheirado e lido por alguém mais de um século depois. O exemplar do livro percorrera todo esse tempo, passara por estantes, gavetas e cabeceiras de tantos outros leitores e agora seria apreciado pelo personagem do filme.

José Mindlin, bibliófilo brasileiro, começou sua coleção de livros raros aos 13 anos, quando adquiriu Discours sur l’Histoire universelle, de Jacques-Bénigne Bossuet, de 1740. Quando morreu, em 2010, possuía mais de 40 mil exemplares. Cada um deles carregava a sua própria história e parte da história de quem o leu. Alguns inclusive possuem anotações dos leitores, o pensamento de alguém que em não-sei-quando concluiu algo sobre aquilo que estava neste objeto tão importante que é o livro.

O artigo 24 da Padaria Espiritual, movimento literário cearense com ares modernistas, realizado 30 anos antes da Semana de 1922, dizia: “Trabalhar-se-á por organizar uma biblioteca, empregando-se para isso todos os meios lícitos e ilícitos.”

Uma amiga minha me contou que encontrou num sebo da cidade uma versão em inglês de Ulysses, de James Joyce, quase de graça. Ela pagou antes que o vendedor desse conta do que estava fazendo. Ficou muito emocionada. Chegou em casa, tomou banho, acendeu um incenso, encheu uma taça com vinho e ficou admirando o livro durante um bom tempo antes de começar a lê-lo.

Certa vez, pedi um livro emprestado a uma aluna minha. No dia seguinte, ela trouxe o livro, que ainda estava no plástico, e me permitiu que tirasse o plástico do livro, embora ela considerasse esse momento muito significativo. Depois que eu tirei, ela pediu que eu escrevesse o nome dela e a data na primeira página, pois ela seguia esse ritual sempre que adquiria um livro.

Ano passado, uma turma da qual eu era professor, me deu de presente O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo. Os sete volumes vieram numa caixa que, disposta em uma das minhas prateleiras forma um colorido hipnotizante com os outros livros.

Dentre esses livros, está uma edição de Ubirajara, de José de Alencar, publicada em 1958. Na primeira página, estão escritos o nome da antiga dona do livro e a data que, possivelmente, ela adquiriu o volume. Não sei se é só comigo, mas eu fico pensando se ela ganhou de presente, se ela comprou, se ela roubou de uma biblioteca, se ela pediu emprestado e nunca mais devolveu, enfim, tem uma história ali além da que está escrita, tem a história do livro-objeto.

Mas são só sensações. O mundo é muito prático e não há mais lugar pra elas.

2 comentários:

  1. É, mas parece que "Tablets substituem livros"! Mas é pela hipoteca, eu sei.

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  2. Tablet substitui livros. Como campanha de marketing, arrasadora.

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